Crônica Zuca e a Bicicleta

    Bem, galera, estava pegando umas provas do ensino médio para dar pra minha irmã mais nova estudar e achei alguns textos do meu antigo professor de português. Gosto muito dessa crônica e resolvi compartilhar com vocês:
ZUCA E A BICICLETA:

       Quando viu a menina com uma bicicleta, Zuca maravilhou-se. 
       Desviou o olhar para não chamar a atenção dos companheiros, mas o coração se envolveu mais do que devia ou que achasse merecer. 
       - Vamos, Zuca, vamos - chamou um dos moleques que, com ele, tomava banho na água lodenta do chafariz da praça. 
       - Mergulha também - completou outro. Zuca nem ouviu. 
       Vontade de ir lá falar com ela. Mas não tinha ideia de que palavras a menina se servia.Vontade de lhe oferecer um sorriso. Mas seu semblante sempre caótico e carrancudo não lhe permitia se impor. Na verdade, embora menino ainda, tinha consciência do peso de sua inexistência no mundo: vida vivida entre um aqui e um ali incertos, sustentada por furtos, esmolas e gorjetas oferecidas pelo malabarismo com laranjas em frente aos carros nos sinais luminosos; vida carcomida bem antes de se tomar homem.
       A menina, esta sorria. A brisa do momento alisava seu rosto e o sol estendido sobre seus cabelos formava para Zuca uma imagem régia. Dava voltas no quarteirão, voltando ao ponto onde o pai, seu escudeiro, recebia-a sempre com muito orgulho e braços abertos feito apertasse um tesouro. 
       Zuca observou que entre os dois havia algo que ele não tinha. Ignorante que era, não sabia dizer o nome. Via o sempre contente laço entre pai e filha e desconhecia a razão do insistente abraço repetidas vezes. No seu mundo privado do abraço e do beijo figurava a ausência. 
       Foi Rapé, o menino maior e mais experiente, que notou o olhar de cobiça de Zuca, sem perceber o alvo: 
       -Que foi. Zuca? Tá olhando a bicicleta? - falou reservadamente. 
       Zuca fez que sim. Não daria na vista suas intenções. ão alimentaria forças para gozações. 
       Reconhecia a impossibilidade de naquele instante revelar seu segredo só realizado na terra do nunca. 
       - Caramba! Com aquela bicicleta eu ia até passear na lua - elogiou Rapé - Eta, máquina bonita! Fazia que nem naquele filme do ET que a gente vimos na vitrine da loja no outro dia. Era só assim: eu voando e as pessoa lá embaixo de boca aberta, vendo nós dois coladinho. Eu e minha bicicleta mágica. Feito dois namoradinho! 
       Disse isso, riu, e fez os gestos, voando imaginariamente, cortando o clarão da lua, corno no filme. Zuca afrouxou na boca um sorriso de lua minguante. 
       - Menina boba, né? - inquiriu o chefe - Fica dando bobeira por aí. Assim perde tudo. 
       Desta vez, Zuca nem riso minguou. Os olhos procuraram na garota um motivo miúdo para tanto apego. Como a coisa estranha se entranhava nele tão de repente sem dar aviso ou marcar consulta? 
       - Se quiser a bicicleta, Zuca, a gente pega pra você! - falou Nanico, o mascote do grupo, já interessado na conversa e na rapina. Depois completou: A gente é forte, somos muitos, podemos tudo. 
       - Ih, olha o cara - observou debochado o líder - Tá querendo mostrar serviço, mané? 
       - Se tô! 
       - Esse vai ser dos bom: de pequeno já tem o sangue fervendo - disse Rapé, segurando o menino pelo pescoço e dando-lhe uma gravata, numa forma bruta de carinho. 
       E a turma toda, agora atenta, desafiou a angústia, rindo um riso honesto, que para o deboche o riso servia.
       E de novo Zuca não riu. 
       Diante de tal seriedade a turma fingiu que se calou. Viram que a bicicleta não os levaria a lugar nenhum. Rapé fez sinal para todos por trás de Zuca. Indicou uma conversa informal para traçar a próxima brincadeira. Foram se afastando de vagar. Ficaram cochichando. 
       Zuca teve um pressentimento. Não queria a bicicleta. Eles não entendiam. Não entendiam também de abraço nem de beijo. Como entenderiam então que o seu desejo estava na menina, no universo dela, protegido dia e noite, vida inteira por uma redoma para ele? Corno entenderiam que queria contato na forma mais simples de ser: olho no olho, sorriso no sorriso, fala na fala; tudo num vai-e-vem honesto e sem desconfianças? E aquele desejo recalcitrante que parecia grudar no seu coração mesmo a vida não permitindo? 
       Se ele não sabia como, imagine os outros ... 
       De repente, um dos meninos se voltou para ele anunciou: 
       - Zuca tá apaixonado, gente! 
      Fizeram isso mais como um jeito de tripudiar dele do que por convicção de seus sentimentos. Zuca ficou sem jeito, mas nem ajeitou a voz para reclamar de nada. 
       - Tá querendo namorar? 
       E Zuca mudo. 
       - Toma essa aqui - mostraram Tiane, a única menina do grupo - Namora ela! Todos riram. 
       E ela, solícita e sem-vergonha, fez pose de modelo. Disse, fazendo um charme provocativo:
       - Dou até beijinho na boca. 
       - Com língua e tudo? - perguntou Nanico, interesseiro. 
       - Também. 
       - Em todo mundo? - questionou novamente o Nanico. 
       - Menos em você que ainda é pirralho - retrucou a colega. 
       A gargalhada avançou. 
       Zuca não se incomodou. Mas falou com autoridade provocante: 
       - Quando eu quiser namorar, não vai ser com uma lombriga magrela que nem você. Nova balbúrdia adoçou o momento crítico e cítrico. 
       - Eu? Lombriga magrela? - questionou Tiane, meio despeitada e desgostosa, pois intimamente era dele de que ela gostava mais. 
       - É. Lombriga seca que não sabe nem namorar e fica se mostrando. 
       - Pois fique o senhor sabendo que eu sei namorar muito bem. 
       A mocinha disse isso e deu um beijo em Rapé, só para provocar ciúmes . .. Uh! - fizeram todos, festejando. 
       Mas Zuca não prestou atenção. Seu olhar de novo tentava se infiltrar no pensamento da menina de bicicleta. E já era forte sentimento de perda, porque pai e filha se preparavam para ir embora da praça. 
       Não vendo reação do companheiro, os meninos arrefeceram. E logo tornaram a se jogar na água barrenta. 
       Zuca acelerou. A menina veio vindo, veio vindo; e, quando passou bem perto da calçada onde ele estava, buzinou para não o atropelar. 
       Quanta honra Zuca sentiu naquele momento. Viu que ela dava importância para ele, alertando-o sobre o perigo. E ele refletiu que a vida é dura, injusta e perigosa também. Custava nada ter sido um pouquinho mais generosa com ele? Custava nada lhe dar a chance de entrar na vida da menina para poder passear de bicicleta na lua ou voar como o ET? 
       E como um ser alheio às preocupações de seu admirador secreto, ela passou, sumindo pela esquina. 
       Foi Rapé que lhe deu esperanças. Bateu nos ombros de Zuca e lhe disse em particular, filosofando um clichê visto um dia em um para-choque de caminhão: 
       - Não liga não, Zuca. Um dia você vai ser grande também. A gente nasce tudo pelado e tudo que vem é lucro. 
       E Rapé deu uma gravata em Zuca como fizera com Nanico. E ambos foram olhar o espetáculo entedioso do incansável bate-estaca na obra ao lado da praça. 
       De longe, Tiane olhava-o com ternura e remorso. "Faz isso não, Zuca. Eu gosto de você. Você é meu amorzinho." - disse para si. 
       E ficou ali, pensando em como são difíceis o beijo e abraço, quando as pessoas não têm o hábito de ter o beijo e o abraço como irmãos. Como gostaria de chegar perto dele e fazer um cafunezinho: dizer que um dia ambos teriam tudo, desde bicicleta até o mais impossível como a própria felicidade vestida de amor.
       Mas nem sabia de que palavras ele se servia ... 

(Luiz Claudio Machado de Santana)


       Ele publicou um livro de crônicas no início do ano, "Amor no Ponto Exato". Seu valor é R$ 25,00 via correio. Para adquiri-lo, entrar em contato pelo e-mail luizclmachs@hotmail.com. #FicaaDica.
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13 comentários:

  1. Amei o texto! Até favoritei o blog dele aqui para quando tiver tempo ler mais!

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  2. Eu amo essa crônica!! Já havia lido em outro lugar e relembrá-la aqui foi muito legal!!

    Beijos
    Adriano Gutemberg
    http://geracaoleiturapontocom.blogspot.com.br/

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  3. Ah... o primeiro amor, o mais puro dos sentimentos... Adorei a cronica mto bem escrita pude imaginar aki cada sena descrita.
    Não conhecia o autor, vou procurar saber mais dele...

    bjn

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  4. Adorei a crônica, mas fiquei com uma dózinha do Zuca. Gostei da escrita do autor, vou dar um olhada no livro dele.

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    1. Eu também, li outras crônicas que tem no blog dele e adorei.

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    2. Deu dó sim, pq ele poderia ter aquilo que ele estava desejando e nem se deu conta :\ Também gostei bastante da escrita dele :D

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  5. Zuca é um nome muito sensacional!!! \o/
    Adorei a crônica e a escrita do cara é muito bacana xD

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    1. o titulo é sensacional, bicicleta me lembra um dos livros mais legais que li quando era criança.

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  6. Bem escrita,vou dar uma pesquisada sobre o livro na net :)

    http://dienyladyy.blogspot.com.br/

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  7. Que crônica linda *-*
    Adorei a história e a mensagem que ela passa.
    O Zuca desejando uma coisa que alguém logo ali do lado dele pode oferecer mas ele não percebe... gostei mesmo do texto!!

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    1. Eu adoro essas crônicas, elas conseguem transmitir tanto em tão poucas palavras.

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    2. E o modo como o autor escreve ajuda bastante na hora da compreensão, gostei muito disso :D

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